.....................

terça-feira, julho 17, 2007

Último lance em campo

Adolfo Ferrez parou o carro e viu que os pais das outras crianças olhavam para ele de forma atravessada. Estava tão distraído que nem percebeu que o filho já havia entrado no carro, falando sem parar.

- Papai, meus colegas disseram que você é muito ruim, é um jogador frouxo. O que é um cara frouxo?

“Malditos moleques, não perdoam nem meu pequeno”, pensou.

- Nada, guri. Eles falam essas coisas porque têm inveja de você, queriam ter um pai como o teu.

Queria chegar logo em casa, almoçar e, mais uma vez, tentar esquecer o que havia acontecido no final de semana. As esquinas passavam sem que ele percebesse, apenas parava quando encontrava um sinal vermelho. E aí a humilhação continuava. Dos carros ao lado, das pessoas que atravessavam a rua ou mesmo de pedintes que ali estavam partiam gritos de “frouxo”, “ex-jogador”, “perna-de-pau”, para dizer os mais suaves. Ele apenas tentava entender como aquilo fora acontecer.

Antes mesmo de se profissionalizar no futebol, Ferrez já era chamado de “El Mestre” pela torcida. Zagueiro desde que conheceu a bola de futebol, ficou conhecido pelos botes certeiros para roubar a bola dos adversários, sempre com muita lealdade. Fazia poucas faltas e podia contar nos dedos as vezes que fora expulso em quase 20 anos de defensor. Era uma liderança natural dentro de campo, tanto que era o capitão do time.

Outra característica sua era a precisão de seus passes, diferente dos tradicionais chutões dados por outros colegas de profissão. Muitas foram as vezes que, lançando antes do meio de campo, conseguiu colocar a bola no pé do seu atacante na grande área. Para melhorar esses lances, ficava no gramado após o treino, ia para o círculo central e tentava colocar a bola no pé da trave de uma das goleiras. Para lhe devolver a bola, contava com a ajuda do jovem Rodrigo Pillar, de 17 anos, que recém entrava no time profissional. Pillar também era zagueiro e gostava de ouvir os conselhos do Mestre, pois tinha nele o modelo de jogador que gostaria de ser.

Mas nos últimos tempos as coisas estavam mudando para Ferrez. O passe já não era tão certeiro, adversários um pouco mais velozes ganhavam dele em qualquer corridinha e o time estava caindo de produção. Mas ainda assim haviam conseguido chegar na final do campeonato, contra o time da cidade vizinha.

E foi nesse jogo que aconteceu o golpe fatal para Adolfo “El Mestre” Ferrez. Um chutão do time adversário, uma bola fácil próxima a bandeirinha de escanteio. Ferrez partiu para dominar, sem ninguém por perto. Colocou o pé sobre a bola, preparou o lançamento e, não se sabe como, acertou o a canela direita no calcanhar esquerdo. Caiu, vendo ao lado a bola parada e o pé do atacante adversário que a roubou e partiu, tranqüilamente, para fazer o gol do título. Não se ouviam os gritos de gol dos torcedores rivais, mas sim as risadas de quase 25 mil pessoas e os mesmos insultos que eram repetidos nas sinaleiras de sua cidade.


Mas agora ele estava em casa e queria esquecer isso tudo, logo ia passar. Afinal, à tarde teria a convocação da seleção para a Copa e depois ele voltaria ao treino da tarde tranqüilamente. Assistindo na TV ao programa de esportes, viu várias vezes o cruel lance. Até que anunciaram os jogadores que defenderiam o país no Mundial.

- Por causa desse lance, não impressiona a ausência do nome de Ferrez na convocação feita hoje pelo técnico da seleção. Parece que é o final da carreira para ele.

Não acreditava naquilo. Estava fora. No almoço, mal tocou no prato, ainda que fosse sua comida favorita. A esposa não o reconhecia mais, tentava saber onde estava aquele rapaz feliz e galanteador que a havia conquistado num baile no interior. O próprio Ferrez também não sabia.

Saiu de casa e voltou para o clube. O ambiente era de velório. Todos o cumprimentavam e eram correspondidos, mas sabiam que o capitão não estava bem. O técnico do time pegou os jalecos e começou a distribuir aos titulares de sempre. Ferrez se preparou para pegar o terceiro jaleco, como sempre, mas a direção dada á peça pelo treinador foi outra.

- Pillar, você é o titular a partir de hoje.

Ferrez, com o profissionalismo que sempre teve, foi para o time dos reservas e treinou normalmente. Mas ao terminarem os trabalhos, foi direto ao vestiário, para a surpresa de Pillar, que se preparava para o ritual de chutes do meio de campo junto ao experiente colega.

A vontade de chegar logo em casa e ver aquele dia terminar justificava a ação de Ferrez. Novamente não comeu muito no jantar, apesar dos apelos da esposa, e se preparou para dormir antes mesmo do telejornal da noite. Antes de deitar, abriu uma gaveta e pegou um presente que seu pai lhe havia deixado há tanto tempo. Colocou-o sob o travesseiro e tentou dormir. Mas não conseguia.

Passados alguns minutos da meia-noite, levantou-se e tirou debaixo do travesseiro o presente do pai. Certificou-se que a esposa estava dormindo e lhe deu um beijo. Repetiu o mesmo gesto no quarto do filho, antes de pegar o carro e partir.

Com as ruas vazias, chegou rapidamente ao Estádio Nacional, onde jogou tantas vezes e muitas glórias alcançou. Os portões estavam fechados, mas sabia de um canto no qual havia uma passagem no muro. Entrou por ali e foi até o meio de campo, de onde partiu seu último disparo.

Ponto final

Esse post não me saía da cabeça desde que li a história de Abdón Porte no livro ”Futebol ao sol e à sombra”, do uruguaio Eduardo Galeano. Porte foi um grande jogador do Nacional de Montevidéu mas, no dia 5 de março de 1918, se matou ao centro do estádio Parque Central, onde seu time jogava. Quem quiser saber mais sobre essa história, pode clicar aqui. Agora, sobre o livro de Galeano, merece um post à parte.

Nenhum comentário: