Lá na velha cancha
Acordado pelo forte cheiro que vem da boca do Riachuelo, aqui perto, abri os olhos. Estava no centro do campo do velho estádio, um nível apenas, de arquibancadas de tábuas. Naquele dia estava abarrotado de gente, e sentia que o povo inteiro fazia barulho, mas não conseguia escutar nada. Tudo era silêncio. Vestia uma camiseta amarela e ouro, que naquele momento pesava uns 30 quilos, eu acho. Não pela responsabilidade de defender este clube, mas pelo material do qual era feita.
Acho que era lá pela década de 30, pois estava junto a Varallo contra dois adversários. Ele tinha a bola aos pés e puxava o contra-ataque, driblando na linha central o penúltimo zagueiro que restava (como jogava o Varallo!). O último beque, no caso, me marcava. Aliás, nem respirar direito eu conseguia. Mas no momento do drible, senti que ele balançou e já não sabia se continuava me cercando ou partia para roubar a bola do outro atacante. Para não ficar em impedimento, o acompanhava sempre na mesma linha.
Nisso, senti que ele me deixou e iniciou a corrida em direção ao meu companheiro, que já chegava próximo a metade do caminho à meta. Varallo também percebeu a corrida do defensor e me viu partir na direção oposta, lançando a bola no milésimo de segundo exato para que eu não estivesse adiantado e a jogada fosse invalidada.
O passe foi um pouco forte e deixou a redondinha na entrada da grande área, me obrigando a forçar minha corrida. Mas eu não chegava nunca! Quanto maior o esforço, mais parecia me mover em câmera lenta. Para piorar, tinha a impressão que o goleiro estava mil vezes mais rápido e se aproximava mais. Certamente chegaria primeiro que eu. Já não escutava nada e, nesse momento, o campo também desapareceu. Sobramos apenas o meu rival, a bola, o arco e eu.
A vertigem passou quando senti o bico da chuteira dar um toquezinho na bola, para a direita, tirando do guarda-metas rival, que, com as grandes mãos abertas para fazer a defesa, acabou passando lotado. Já via o gol vazio e, ao me preparar para chutar, senti que o arqueiro ainda tentou um último recurso, segurando meu pé. Mas me livrei, tropecei e, aos trancos e barrancos, recuperei o equilíbrio e o tempo parou para ver aquela bela imagem.
É bonito ver uma goleira vazia. Ainda mais as da velha cancha. Retangular, cuidadosamente nivelada, com traves e redes, antes brancas, já marrons do barro e da exposição ao tempo. Mas, naquele momento, faltava algo para deixar aquele cenário ainda mais lindo. Faltava colocar a bola lá dentro, fazer balançar não apenas aquela trama de fios, como também os velhos postes de madeira. Cabia a mim completar a obra.
Assim o fiz.
Só então voltou a imagem do estádio e consegui ouvir a torcida, naquela ensandecida loucura de um grito do qual você só ouve "ooooooooollll"! Iniciei outra corrida, mais tranqüila, e podia sentir a voz de cada um dos que, felizes, se apertavam próximo da cerca que divide a arquibancada do gramado.
E foi no meio daquela gente toda que eu a vi. Cabelos loiros e olhos azuis, vestida com jeans e blusinha preta, destoando um pouco da formalidade das roupas daquela época. Acenava e me dizia algo em português, e eu respondia em espanhol: "Es para vos, nena, te quiero mucho!"
Senti que alguém me empurrava para que voltasse logo pro meu lado para que se reiniciasse a partida. Mas o fazia de modo tão brusco que caí.
Caí da cama, na verdade. Ainda voltando à realidade, soltei um "concha tu madre", enquanto tentava voltar de onde viera. Nisso vi o olhar assustado do meu irmão, despertado pelo barulho.
- E aí, foi de bicicleta dessa vez? - me perguntou.
- Não. Driblando o goleiro depois de um contra-ataque. Um golaço. Tinha que ver.
- Tá, tá bom, deixa eu tentar dormir de novo. Preciso acordar cedo amanhã. Vê se te controla. Boa noite.
- Dale ô, dale ô...
- Silêncio aí, tchê!
- Ops, desculpe...
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É isso que dá ler contos de futebol antes de dormir. Mas “Y el fútbol contó un cuento” vale a pena. O radialista Alexandre Apo fez um seleção de 16 textos, com o futebol como tema central, entre os muitos que lê, todas as noites, em seu programa na Radio Continental de Buenos Aires.
São 16 autores diferentes que relatam não apenas fatos de campo, como a exaltação a craques (o surgimento de Maradona na Arca de Noé, por exemplo, escrito por Rodolfo Braceli) ou grandes títulos conquistados (é sensacional o relato de Mempo Giardinelli sobre um fanático torcedor do Vélez Sarsfield e o primeiro campeonato argentino vencido pela equipe em 1968). Falam também sobre crises no amor, a relação entre pais e filhos, mas sempre com emoções que permitem a relação entre o esporte e a literatura.
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