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quinta-feira, fevereiro 07, 2008

João Alberto, jornalista – 3
O circo pegou fogo

Fazia um mês que estava trabalhando na redação. Trabalhava durante o dia e era uma espécie de coringa. Para onde precisassem me mandar, para lá eu ia. Eram coisas muito de agenda, como coletivas de divulgação de resultados de empresas, cafés para anúncios de novos investimentos, almoços em eventos empresariais, jantares de premiações, enfim, nada que fosse ter muitas análises no dia seguinte.

Mas o meu objetivo é ser um jornalista investigativo, revelar a sujeira embaixo do tapete, achar a agulha no palheiro. Enquanto cumpria com a minha tarefa, buscava sempre ter um tempo livre para investigar algumas coisas por conta própria.

Foi assim que estava próximo de descobrir um escândalo de corrupção envolvendo um deputado. Um amigo meu é assessor dele, mas há uns dois meses deixou de estar na lista dos recebedores de um “por fora” gerado por um esquema de desvio de dinheiro e troca de favores desenvolvido pelo deputado. Por vingança, estava abrindo o jogo. “Vou fazer isso por você, que é meu amigo. Não é pelo jornal que você trabalha, ou pelo seu chefe, mas por você”, me disse, passando alguns relatórios. Contatos, meu caro, são importantes nessa profissão. E eu tinha o cara certo.

Numa tarde, estava na redação esperando uma ligação da minha fonte. Ele estava por me dar o dado que faltava para a divulgação do esquema. Nisso, chegou meu editor.

- Está faltando trabalho aí, que está parado e rindo?

- Nada disso, chefe. Tenho uma bomba por estourar. Se tudo correr bem, em pouco tempo o senhor vai saber.

- Tá, tá, mas não temos tempos para segredinhos aqui. Seguinte: estão acontecendo coisas estranhas no Circo dos Irmãos Borkoff, que chegou essa semana na cidade. Parece que estão sumindo algumas coisas do palhaço. Quero que você vá lá e investigue essa história para mim, ok?

- Mas, chefe, estou esperando uma ligação que... bom, vou lhe contar. Descobri um esquema de corrupção envolvendo um deputado grandão. Um assessor deixou de receber a bola e tá entregando o jogo. Ele vai me dar a informação que falta para fechar a matéria daqui a pouco.

- Não sei se você tem lido o jornal do qual participa, mas de escândalos políticos só hoje demos três, um na capa. O que te pedi mesmo?

- Para ir checar uma denúncia de roubo num circo?

- Bom, parece que, de fato, um pouco de inteligência resta ao senhor. Mas o que está fazendo aí parado? Andando! É pra ontem! Pra não dizer que sou ruim, vou te dar o título de barbada. “Confusão no picadeiro, o circo pega fogo”. Agora vai e traz uma matéria que feche.


Essa história de ter um título antes da matéria nunca me agradou. Você vai condicionado a buscar certa coisa e fecha os olhos para detalhes importantes. Mas não adiantava argumentar. Ia ser pior. Apenas ia reduzir o tempo que tinha para ir ao tal circo e ver o tal escândalo tão importante.

Ao chegar lá, comprei um ingresso e decidi assistir ao espetáculo. Não sei quanto tempo fazia que não ia a um circo. Tampouco consigo entender que graça eu via e qual estão vendo as centenas de crianças ao meu redor. Passaram o mágico, o domador de leões, os gorilas, os anões e o palhaço...

Aliás, o palhaço era de dar dó. Foi anunciado como Alegrito, mas não tinha nada de alegre. Meteu a mão em um dos bolsos do macacão de bolinhas para tirar algo e não achou. Colocou do outro lado e nada. Por dentro da roupa, menos. “Que truquezinho sem graça”, pensei. Nisso, se irritou, arrancou a peruca da cabeça, atirou com violência no chão e saiu do picadeiro aos berros. “Assim não dá! Não tem como trabalhar nessa joça! Tá sumindo tudo!”.

Enfim consegui rir um pouco. Aquela tinha sido boa. Mas enquanto ria me passou pela cabeça que o fato poderia ser sério, talvez fosse aquele o palhaço que estava sendo roubado. Caramba, como sou bom em deduções! Cada vez eu me surpreendia mais!

O espetáculo terminou ali, com todo mundo comentando, felizes, a sensacional saída de Alegrito. Acompanhei o povo mas, discretamente, observava um meio de chegar aos camarins e falar com o palhaço. Saí de mansinho para o lado, cuidando se não era perseguido. Quando pensei em acelerar o passo ouvi aquela doce voz feminina.

- Olá, bonitão! Perdidinho?

“Bonitão”. Ah, o meu charme é irresistível. Eu sabia disso e agora elas também já estavam sabendo. Quando me virei preparando o olhar de detetive de filme noir, não consegui segurar o susto. Era a Mulher Barbada.

- Ops, hum, é, mais ou menos... na verdade, sou jornalista e gostaria de falar com o palhaço Alegrito. O senhor, desculpe, a senhora poderia me ajudar a encontrá-lo?

- Você marcou com o nosso assessor de imprensa?

“Está certo que é um mercado crescente, mas até num circo?!?”, pensei.

- Na verdade não. Cheguei agora e precisava bater um papinho ligeirinho, coisa de 15 minutos com ele.

Ela se aproximou (até demais, diga-se de passagem) e colocou a mão sobre o meu ombro.

- Eu não deveria fazer isso, mas como gostei de você, vou lhe ajudar. Venha por aqui.

Deixei que ela fosse na frente, não apenas para mostrar o caminho mas para que eu pudesse tentar esquecer a visão daquele pelego todo que ela levava na cara. Dois trailers depois, chegamos a um com a máscara do Alegrito desenhada na porta. A barbuda abriu e vimos que ele estava lá, secando uma garrafa de vodca.


- Mas que porcaria é essa? Nem beber em paz eu posso?

- Desculpa, Alegrito...

- Alegrito, nada! Já falei que fora do picadeiro tem que me chamar de Wastrildo. Meu nome é Wastrildo!!!

- Ahahahahahahahah!

- Do que estão rindo?

- Nada, desculpe...Tudo bem, Wastrildo... ahahahahah... ops, desculpe... Este jovem e esbelto rapaz aqui é jornalista e gostaria de falar com você.

- Olá amiguinho... peraí, o que eu tô falando, aquela droga de apresentação já terminou. Que você quer? Fala rápido que eu tenho que descansar.

Nisso olhei a Mulher Barbada e pedi se ela poderia nos deixar a sós. A contra-gosto e com um pedaço da minha camisa, ela saiu. Expliquei a situação a Alegrito, ou melhor, Wastrildo.

- Ficamos sabendo que estão sumindo algumas das suas coisas.

- É verdade, nunca tinha acontecido em lugar nenhum. Só nessa cidadezinha furreca. Primeiro foram os narizes. Depois, os chapéus. Hoje procurei minhas bolas e não achei.

- Como, desculpe?

- Bolas de malabarismo, bolinhas.

- Ah, entendi. Mas você tem alguma suspeita?

Ele tinha. Aliás, era o mesmo nome que eu tinha em mente. Ainda que não tivesse investigado nada até aquele momento. Mas era um pressentimento de jornalista, sabe como é. Visão ampla do cenário. Dois segundos depois, batíamos à porta do trailer do mágico Tchatcharilov. Com aquele forte sotaque hispânico que todos seus colegas têm, nos recebeu.

- Que pasa? Entrem, estoy descansando um pouco pero posso conversar com ustedes.

Tomei as rédeas da situação e expliquei ao mágico o que estava passando, ou melhor, acontecendo.

- Despacio, despacio senão é difícil entender. Casi impossível!

Desacelerei a fala. Ao terminar a história, Tchatcharilov se exaltou.

- Pero o que é isso? Ustedes piensan que eu tenho cara de palhaço?

- Como? - interrompeu Alegrito.

- Desculpe, Alegrito, não era para ofender.

- Alegrito não! Wastrildo! WASTRILDO!

- Ahahahahahahahahah

- Não tem graça! E também não tem desculpa. Você é um especialista em fazer coisas desaparecerem. Levou meus narizes, meus chapéus e até minhas bolas.

- Quê?

- Minhas bolinhas de malabarismo!

- No, no, no! Não estoy aqui para ouvir esses desaforos! Vayan se daqui agora!

Sobrou para mim receber o portaço na cara e rolar os pequenos degraus abaixo. Levantei sozinho, já que Wastrildo estava praguejando e não se prestou a me ajudar. “Pode ir embora, jornalista, que esse desgraçado não vai admitir que foi ele. Vai que não tem nada para você aqui”, resmungou.

Enquanto caminhava e pensava em como ia fechar a minha página, meu faro jornalístico entrou em ação. Na verdade, senti um forte cheiro, uma mistura de cachorro molhado com cachaça. Olhei ao redor, furungando para sentir melhor de onde vinha aquele odor, e vi o gorila com uma garrafa de caninha ao lado na jaula. Ali o budum era insuportável. Quando vi que ele se aproximou da grade, tratei de me esconder.


Nisso, vi que ele tirou alguma coisa do meio do feno sobre qual repousava. Umas coisas vermelhas, uns cones amarelos e umas bolinhas... de malabarismo... epa, eram as coisas do palhaço! Mas o que ela ia fazer com aquilo?

Nisso ele afrouxou uma das barras da grade e a retirou. Saiu e só então vi que se aproximaram alguns garotos desses que fazem malabarismos na sinaleira com nariz de palhaço e chapéu...

Opa!

Saquei minha câmera digital quebra-galho e filmei a rápida e (quase) totalmente discreta troca de sacolas. O gorila soltou as coisas do palhaço e recebeu em troca outra garrafa de aguardente.

Voltei correndo para o jornal e mostrei as imagens para meu editor. Do vídeo tiramos uma foto para ilustrar a matéria, que saiu na capa no dia seguinte, com aquele título “Confusão no picadeiro, o circo pega fogo”. Meu primeiro texto assinado, minha primeira capa. Que orgulho estava sentindo!

Orgulho que nada, estou mentindo. Não sabia onde me esconder quando vi que as tevês e os concorrentes começaram a divulgar também a notícia do gorila bêbado que roubava no circo em troca de bebida. O que importava aquilo ali? Se ainda abordassem a questão daquelas crianças na sinaleira... mas o código da criança nos proibia de fazer isso. Era mais tranqüilo só falar do bicho, porque as pessoas se comoviam mais com histórias envolvendo animais do que relatos da pobreza no país. No fim, a associação protetora dos animais ameaçou processar o circo, que fugiu da cidade, e eu acabei recebendo uma ligação da Mulher Barbada me xingando. Nem ela me queria mais.

À noite, deitado, lembrei da história do deputado, que ainda estava precisando de um fechamento. Bem ou mal o caso era quase parecido ao do macaco: um roubo aqui para receber algo ali. Era triste, mas até os animais já estavam se rebaixando ao nível dos políticos.

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