Parcialidade Total, por Eduardo Leonardi

Na marca da cal

- Aaaaaaaahhhhhhhhh!

Dei o grito e, ainda de boca aberta, acho que comi um pouco de grama ao cair no chão. Ouvi o apito do árbitro e senti um peso nas minhas costas.

- É pênalti, FDP! Tu conseguiu! Tu é f***, c******! P****!

A vibração vinha do capitão do meu time. Já não sabia se doía mais a canela do botinaço do zagueiro ou a minha coluna pelo peso do meu colega. Ele me ajudou a levantar e me entregou a bola.

- Vai, Zurdazo! Faça a nossa gente vibrar!


Bom, deixem que me apresente. Sou Juan Ramon Cruz, mas me chamam El Zurdazo, por esse potente chute de canhota que me permitiu estar na artilharia do campeonato. Jogo num time pequeno do meu país e, se acertar esse gol, pela primeira vez o clube vai disputar a primeira divisão. Faltam poucos minutos para acabar a partida.

- Zurdazo! Zurdazo! Zurdazo!

Enquanto ajeito a bola no esburacado círculo, a torcida vai gritando meu nome. Preciso dar essa alegria a esse povo. Nunca a cidade teve um time entre os melhores. Não sou daqui, assim como outros garotos vim da região mais pobre do meu país para tentar a sorte jogando bola. Aqui apostaram em mim e me deram todo o apoio, tenho que retribuir de alguma forma esse carinho todo.

- Zurdazo! Zurdazo! Zurdazo!

Essa é a minha chance. Se eu marcar, vou ser reconhecido. Talvez terei que deixar o clube, eu sei, mas é a vida. Ouvi dizer que um time da capital quer me contratar por uma quantia milionária. Aí vou para lá, continuo fazendo meus gols lá, serei o maior marcador e campeão do nacional, acabando na seleção. Já pensou minha foto na capa da revista de futebol? Com toda essa fama, vou passar as férias no país vizinho e começar a namorar aquela modelo tão bonita que aparece na TV. Depois de ser campeão do mundo defendendo a bandeira do meu país, me mando para a Europa. Posso até ser o melhor do mundo e ajudar o pessoal que mora na minha região! Ah, se esse pênalti entrar...

Coloquei a bola no lugar, fiz a minha prece e me levantei. Nisso, dei de cara com o goleiro adversário.

- Ei, pulguinha. Tá vendo essa linha aqui? – disse ele, apontando para a última risca do campo. – Essa bola só passa daqui se for pra fora! Se chutar entre as traves, é minha, ouviu?

Aquilo não era apenas uma ameaça. Ali estava El Gigante, o maior goleiro que esse país já viu. Literalmente. Quando abriu os braços, poucos espaços sobraram entre os postes. Além disso, Gigante levantou a taça no ano em que ganhamos o nosso único mundial. Sempre teve fama, dinheiro e, principalmente, um grande caráter. Jogou dez temporadas na Europa e fizeram uma proposta irrecusável para que ele encerrasse a carreira por lá e continuasse como treinador das categorias de base. Ele disse não, pois queria pendurar as chuteiras no clube do bairro onde começou. E ali estava ele, no seu último jogo. O cara que pela TV deu uma das minhas maiores alegrias está diante de mim, em (muita) carne e osso. E eu tenho que superá-lo!

Ah, que eternidade! Eles continuam reclamando com o juiz. Que querem? Vou ter que ir lá e mostrar a caneleira quebrada e o roxo na perna? Para piorar, a torcida adversária, os poucos que vieram, estão justamente atrás do gol. Apontam os polegares para baixo mas, ao contrário do circo romano, eles querem que o sacrificado seja eu.

La p*** madre, e se eu não conseguir? Adeus time da capital. Tchau fama, dinheiro, mulheres... A torcida vai querer meu couro, não vou poder sair na rua mais. Talvez tenha que voltar para minha cidade natal e pegar um emprego qualquer e trabalhar até morrer ganhando nem o suficiente para sobreviver. Já até vejo as pessoas me apontando na rua e comentando: “Aquele não é o cara que perdeu aquele penal?” / “Sim, mas depois daquilo parece que ficou louco, não se firmou em time algum e teve que encerrar a carreira em dois anos. Agora sobrevive com um trabalhinho insignificante” / “Coitado! Sempre ouvi dizer que bebia muito, deve ter sido por isso que se afundou”.

- Priiiiiiiiiiiii!

Bom, o juiz apitou. A bola está na marca da cal. É hora de chutar.