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quinta-feira, novembro 08, 2007

Memórias de viagem 3
Vinte e uma horas de ônibus no dia de 25 horas

Três da tarde. Sentado na estação de Retiro, olhando as nuvens escuras que há quatro dias permaneciam sobre a cidade, pensava na longa viagem que teria pela frente. Até chegar a Santiago seriam 21 horas de viagem, se tudo corresse bem.

Uma senhora interrompeu meu pensamento. Com a plataforma de embarque cheia, ela veio direto a mim e perguntou se ia para Santiago com a TAC/CATA. Surpreso, respondi que sim. Não sei como ela descobriu. Comentou qualquer coisa sobre o horário e sentou em outro canto, até que o ônibus chegou. Embarquei, fui até a poltrona 20, janela, e, pouco tempo depois, a senhora subiu, procurando a poltrona 19.

Enquanto a rodoviária ia ficando para trás, descobri que ela era peruana, estava em Buenos Aires há cinco anos trabalhando como empregada, mas já tinha passado um outro período de nove anos ali. Agora, estava voltando em definitivo para casa. Tinha uma filha formada em Direito e um filho que trabalhava num banco e estava concluindo a faculdade de Administração. Foi ele quem deu a ordem para que ela voltasse. “Mãe, você já trabalhou demais. Agora venha para cá e aproveite a vida, deixe que a gente cuida da senhora”, me contou ela, orgulhosa. Ela ainda tinha um longo caminho. Em Santiago, pegaria outro ônibus para o norte do Chile, até Arica, na fronteira com o Peru, e dali até a sua cidade, somando mais de 40 horas de viagem.

Isso ela me falou enquanto tentávamos sair de Buenos Aires, devido ao congestionamento do final da tarde. Não bastasse isso, o ônibus ainda fez algumas paradas em outras rodoviárias de bairros e cidades vizinhas. Depois da cidade de Moreno, duas horas depois do início da jornada, é que o ônibus embalou.

Ao olhar pela janela, a paisagem era sempre a mesma. Planícies e mais planícies da Pampa Argentina, que parece não ter fim. Para me distrair, ia anotando os nomes dos lugares por onde passava. Na ordem, sempre pela Ruta 7, deixamos para trás Buenos Aires, Liniers, Hurlingham, Ituzaingo, Moreno, General Rodríguez, Luján e Carmen de Areco, quando anoiteceu e ficou difícil ver as placas das cidades. Lembro de ter visto ainda Junín e Laboulaye. Ali, o ônibus abriu para ultrapassar seis motoqueiros sobre suas “La Poderosa”, numa cena que me fez lembrar o filme “Diários de Motocicleta”.

Depois da janta, servida dentro do ônibus (eles têm um ótimo serviço de bordo, melhor que de muitas companhias aéreas), colocaram um filme (DVD pirata, diga-se de passagem): “The Transporter”, 1 e 2, que em português foi traduzido para “Carga Explosiva” (porquê?). O aparelho de DVD não funcionava muito bem, estava com problemas de mau-contato e a toda hora a imagem era interrompida, enquanto o pessoal do ônibus tentava desesperadamente arrumar.

O filme tinha bastante ação, o que não ajudava muito para dormir. Era quase uma da manhã quando colocaram outro DVD, uma comédia argentina, “El manosanta está cargado” (algo como “O pai-de-santo está carregado”, tem um trecho no YouTube). Criada pelo humorista argentino Hugo Sofovich, tem no papel principal Alberto Olmedo, que já fazia esse personagem no programa de Sofovich na TV, “No toca botón”.

Lá pelo meio da película, o cansaço me pegou e apaguei. Fui acordar três horas depois, perto das 5h30, quando chegávamos em Mendoza. Ali fizemos uma pausa de meia hora na Rodoviária, a salvação do aperto no qual estava.


Quando retomamos a estrada, já não haviam mais planícies ao fundo. Os primeiros paredões da Cordilheira dos Andes iam se iluminando conforme o sol subia. Apesar da cor seca, era uma bela vista, pelo contraste com o branco que permanecia sobre os montes. Fomos nos aproximando cada vez mais da barreira, subindo por ela, passando próximo ao Aconcágua, o ponto mais alto das Américas (6.962 metros).


Três horas depois da saída de Mendoza, cruzamos o Túnel Internacional Cristo Redentor, fronteira da Argentina e Chile. Um trecho muito complicado no inverno, pois fica constantemente fechado em razão da neve, que impede o tráfego. Do outro lado do túnel, está o Paso Los Libertadores, onde ficamos uma hora para fazer os trâmites de saída de um país e entrada no outro.


Após passar a placa que dava as boas vindas ao Chile, começou a descida, que vai até a capital, por uma estrada em caracol, beirando o morro. O tempo, bem aberto, permitiu uma ótima vista do caminho, tendo ao lado os rios com água do degelo das montanhas. Estávamos acima das nuvens, passamos entre elas e ficamos bem abaixo delas depois. Era curioso ver que, lá em cima, praticamente não havia vegetação. Conforme se descia e melhoravam as condições, apareciam gramíneas que mal cobriam as pedras, pequenos arbustos e árvores.


Perto de meio-dia, apareceu Santiago. Uma hora depois, o ônibus parava no Terminal Alameda, uma das rodoviárias da cidade. Dei uma esticada, atrasei meu relógio em uma hora, para acertar com o horário local, me despedi da senhora peruana e fui para o centro, no meio desse longo dia de 25 horas.

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